Em meados de 2009, imprimi em formato plaquete, o poema Paisagem II, de Horácio Costa, até então inédito. Uma edição especial impressa numa prensa Heidelberg de 1896, em papel de fibra de bananeira confeccionado especialmente para uma tiragem de 100 exemplares. Esse projeto deu origem à série de plaquetes que o Selo Demônio Negro produz até hoje. Logo em seguida, eu e Horácio convidamos o poeta E. M. de Melo e Castro a juntar-se a nós. Ele nos ofereceu para imprimirmos um inédito seu: Os Quatro cantos do caos. Nesse mesmo ano, Horácio convidou Ana Hatherly, que lhe enviou por email esta belíssima Micro-ladainha desdobrável, bilíngue. A troca de mensagens entre a autora portuguesa e o poeta brasileiro são verdadeiros poemas. Este material permaneceu inédito até agora, à espera de um desenho que Ana me enviaria por correio. Não sei se algum dia ela o enviou, ou se nunca me chegou. Resolvi, como homenagem a uma das mais importantes poetas experimentalistas do século XX, imprimir esta plaquete. (Vanderley Mendonça) (Editor)
Sobre a autora
Ana Hatherly (1929-2015) é conhecida pelo experimentalismo de sua obra poética, a espacialização da palavra e a exploração caligráfica da relação entre desenho e escrita. Evidentemente, por sua sua atuação na revista Poesia Experimental, como autora ou co-autora de alguns dos textos fundadores de um “não movimento” de um “não grupo” sem manifesto: a Poesia Experimental Portuguesa (PoEx), surgida em Portugal nos anos 1960 e diretamente influenciada pela Poesia Concreta brasileira e os demais movimentos de vanguarda europeus, que experimentavam a tipografia desde o Futurismo. O grupo era formado por nomes importantes do experimentalismo poético, como E. M. de Melo e Castro, Fernando Aguiar, Salette Tavares, Silvestre Pestana, António Aragão, César Figueiredo, entre outros. Natural da cidade do Porto, Ana Hatherly estudou Filologia Germânica, na Universidade de Lisboa, e Cinema, na International London Film School, e doutorou-se em Estudos Hispânicos do Século de Ouro, pela Universidade da Califórnia. A partir de 1964, assimilou o experimentalismo caligráfico, núcleo da sua obra que explora o próprio corpo da escrita, nos gestos do ato de escrever. Mas é no poema-ensaio e na micronarrativa que a autora de Um calculador de Improbabilidades (2001) construiu sua “estética da subjetividade feminina”, marcada por forte relação com as formas barrocas, objeto de sua pesquisa acadêmica. A paixão pelo barroco, aliás, levou a autora a estudar lírica e música, chegando inclusive a especializar-se na Alemanha. Ana é um dos nomes mais importantes da segunda metade do século XX, no que se refere à experimentação poética. E sua proposta sempre foi o apagamento das fronteiras entre palavra e imagem, num espaço-tempo entre o barroco e a poesia visual, dois sistemas labirínticos da linguagem, que causam, na relação com o leitor/espectador, o choque da surpresa. A autora não se fixou apenas no Barroco histórico. Sua visão sobre essa estética é litúrgica, sensível às cartografias de suas experiências visuais e cinematográficas. Uma leitura atenta à obra de alguns poetas que integraram a PoEx pode nos mostrar a vinculação à tradição (veja-se a lírica de E. M. de Melo e Castro, impressa em cada verso, milimetricamente musicado com a regência que D. Dinis já reivindicava à trova portucalense, no século XIII). Na poesia de Ana Hatherly, esse vínculo se dá numa reinvenção do barroco, em que as alegorias são re-interpretação, onde “tudo e outra coisa é uma escada”, como disse Paulo Pires do Vale, curador de uma das mais completas exposições da obra de Ana Hatherly, no Museu Calouste Gulbenkian, em 2018.